'Para ser feliz, a gente não precisa sair do lugar, a gente tem que ser o lugar.'Carpinejar
sábado, 19 de maio de 2012
Havia decidido: a partir dali, tomaria as rédeas de tudo. Que não lhe
acusassem de comodismo ou inércia – haveria de fazer por merecer a
vergonha do fracasso ou as honrarias de sua glória. Até então, assumia:
tinha apenas brincado de viver. Mais do que isso, tinha tido preguiça da
vida. Abrir a porta do quarto pela manhã era como atravessar a
fronteira rumo a um reino inóspito e inimigo. Tudo lhe aborrecia e
parecia demasiado desnecessário: votos de bom dia com cheiro de café,
ruas paradas pelo trânsito lento, e-mails estúpidos marcados como urgentes, contas abertas sobre a mesa. Preciso pagar as contas ainda hoje,
pensava com lucidez. (A lucidez de quem sabe que o domínio da realidade
pode ser menos perigoso que a rendição à fantasia, ainda que essa tanto
nos descanse). As contas. Os compromissos na agenda. O carro para
abastecer. E eu queria desaparecer mas prometi a mim mesma que a
partir de hoje tomaria conta de tudo, ainda que tudo me doa, ainda que
tudo pareça tão simples aos olhos dos outros, ainda que tudo me
amedronte e me pese e pareça sempre tão mais forte que eu. (...) e
(...). Respirava. (...) e (...). Fechava os olhos por instantes como que
para estancar aquilo sem nome que de dentro dela parecia querer sair.
(Não eram lágrimas – havia desaprendido a chorar. Chorar e rezar eram
duas coisas que havia desaprendido, e isso lhe fazia falta, por mais que
negasse. Aprendera a rezar apenas pra si mesma; piedosa de si,
acreditava que só ela podia atender aos próprios anseios. Ninguém mais.
Absolutamente ninguém mais. Não, ninguém mais havia que cumprisse esse
papel. Era devota e deusa de si, ainda que isso fosse tão precário e
frágil).
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